SHEMA ISRAEL

Sinagoga Morumbi

Yeshiva Boys Choir -- Kol Hamispalel

sábado, 23 de março de 2013

Sobre Piolhos e Homens



No Egito inteiro, o pó se transformou em piolhos. Mas quando os mágicos tentaram produzir piolhos por meio de suas artes secretas, não conseguiram. Os piolhos atacaram tanto os homens quanto os animais. Os mágicos disseram ao faraó: “este é o dedo de D'us.” Mas o coração do faraó era duro, e ele não deu ouvidos.1
Pouca atenção tem sido prestada ao uso do humor na Torá. Sua forma mais importante é o uso da sátira para zombar das pretensões dos seres humanos que pensam que podem imitar D'us. Uma coisa faz D'us rir – a visão da humanidade tentando desafiar o céu.
Os reis da terra defendem seus pontos de vista, e os governantes se reúnem contra o Eterno e Seu ungido.
“Vamos quebrar nossas correntes,” dizem eles, “e tirar os seus grilhões.” Aquele sentado no céu ri, D'us zomba deles.2
Há um maravilhoso exemplo na história da Torre de Babel. O povo no planalto de Shinar decide construir uma cidade com uma torre que “chegará aos céus”. Este é um ato de desafio contra a divinamente dada ordem da natureza (“Os céus são os céus de D'us, a terra Ele deu aos filhos dos homens.”) A Torá então diz: “Mas D'us desceu para ver a cidade e a torre…” Aqui na terra, os construtores pensaram que sua torre chegaria ao céu. Sob o ponto de vista do céu, porém, era tão minúscula que D'us teve de “descer” para vê-la.
A sátira é essencial para entender pelo menos algumas das pragas. Os egípcios adoravam uma multiplicidade de deuses, a maioria representando forças da natureza. Pelas suas “artes secretas” os mágicos acreditavam que podiam controlar essas forças. Magia é o equivalente na era do mito à tecnologia na era da ciência. Uma civilização que acredita poder manipular os deuses, da mesma forma acredita que pode exercer coerção sobre os seres humanos. Numa cultura assim, o conceito de liberdade é desconhecido.
As pragas não eram meramente para punir o faraó e seu povo por terem tratado mal os israelitas, mas também para mostrar a eles a impotência dos deuses nos quais acreditavam.3 Isso explica a primeira e a última das nove pragas antes da matança dos primogênitos. A primeira envolvia o Nilo. A nona foi a praga da escuridão. O Nilo era adorado como fonte de fertilidade numa região que sem ele seria deserta. O sol era visto como o maior dos deuses, Rá, de quem o faraó era considerado filho. A escuridão significava o eclipse do sol, mostrando que até o maior dos deuses egípcios não podia fazer nada em face do verdadeiro D'us.
O que está em jogo aqui é a diferença entre mito – no qual os deuses são meros poderes a serem domados, favorecidos ou manipulados – e o monoteísmo bíblico no qual ética (justiça, compaixão, dignidade humana) constituem o ponto de encontro entre D'us e a humanidade.
Esta é a chave das duas primeiras pragas, que se referem ao início da perseguição egípcia aos israelitas: a matança de bebês do sexo masculino ao nascerem, primeiro pelas parteiras (embora, graças ao senso moral de Puá e Shifrá, tenha parado), depois atirando-os ao Nilo para morrerem afogados. É por isto que na primeira praga as águas do rio se transformam em sangue.
O significado da segunda, sapos, teria sido imediatamente óbvia para os egípcios. Heqt, a deusa dos sapos, representava a parteira que ajudava mulheres no parto. Ambas as pragas eram mensagens codificadas que significavam: “Se você usa o rio e parteiras – ambos normalmente associados com vida – para provocar a morte, aquelas mesmas forças se voltarão contra você.” Uma mensagem muito significativa está tomando forma: a realidade tem uma estrutura ética. Se for usada para o mal, os poderes da natureza se voltarão contra o homem, para que aquilo que ele faz seja feito a ele em troca. Há justiça na história.
A reação dos egípcios a essas primeiras duas pragas é vê-los dentro da própria ideia de referência. Pragas, para eles, são formas de magia, não milagres. Para os “mágicos” do faraó, Moshê e Aharon são pessoas como eles mesmos, que praticavam “artes secretas”. Portanto eles replicaram: eles mostram que também podem transformar água em sangue, e criar uma horda de sapos. A ironia aqui está muito perto da superfície. Os mágicos egípcios queriam tanto provar que podiam fazer aquilo que Moshê e Aharon tinham feito, que fallharam completamente em perceber que longe de tornar as coisas melhores para os egípcios, eles as estavam tornando piores: mais sangue, mais sapos.
Isso nos leva à terceira praga: piolhos. Um dos objetivos dessa praga é produzir um efeito que os mágicos não conseguem replicar. Eles tentam. Falham. Imediatamente, concluem, “Este é o dedo de D'us.”
Esta é a primeira aparição na Torá de uma ideia, persistente no pensamento religioso até mesmo hoje, chamada “o deus das lacunas”. Isso afirma que um milagre é algo para o qual ainda não podemos encontrar uma explicação científica. A ciência é natural; a religião é sobrenatural. Um “ato de D'us” é algo que não podemos classificar racionalmente. Aquilo que mágicos (ou tecnocratas) não podem reproduzir deve ser o resultado de intervenção divina. Isso leva inevitavelmente à conclusão de que religião e ciência são opostas. Quanto mais podemos explicar cientificamente ou controlar tecnologicamente, menos necessidade temos de fé. À medida que o âmbito da ciência se expande, o lugar de D'us progressivamente diminui até o ponto de desaparecer.
O que a Torá está dizendo é que este é um tipo de pensamento pagão, não judaico. Os egípcios admitiam que Moshê e Aharon eram genuínos profetas quando realizaram maravilhas além do alcance de sua própria mágica. Mas não é por isso que acreditamos em Moshê e Aharon. Sobre isso, Maimônides é inequívoco:
Israel não acreditou em nosso mestre Moshê por causa dos sinais que ele realizou. Quando a fé é baseada em sinais, uma dúvida sinistra sempre permanece, de que aqueles sinais podem ter sido realizados com a ajuda de artes ocultas e feitiçaria. Todos os sinais que Moshê realizou no deserto, ele o fez porque eram necessários, não para autenticar seu status como profeta.4
Quando precisamos de comida, ele fez cair o maná. Quando o povo estava sedento, ele bateu na rocha. Quando os apoiadores de Korach negaram sua autoridade, a terra os engoliu. Assim também com todos os outros sinais. Quais, então, são as bases para acreditar nele? A revelação no Sinai, na qual vimos com os próprios olhos e ouvimos com nossos ouvidos.
A maneira básica pela qual encontramos D'us não é através de milagres, mas pela Sua palavra – a revelação, Torá – que é a constituição do povo judeu como nação sob a soberania de D'us. Com certeza, D'us está nos eventos que, aparentemente para desafiar a natureza, chamamos de milagres. Mas Ele também está na própria natureza. A ciência não desaloja D'us, mas O revela, de maneiras ainda mais intrincadas e maravilhosas, o projeto da própria natureza.
Longe de diminuir nosso senso religioso, a ciência (corretamente entendida) deve aumentá-lo, nos ensinando a ver “como são grandes as Tuas obras, ó D'us: Tu as fizeste todas com sabedoria.” Acima de tudo, D'us é encontrado na voz do Sinai, nos ensinando como construir uma sociedade que será o oposto do Egito; na qual os poucos não escravizam os muitos, nem os estrangeiros são maltratados.
O melhor argumento contra o mundo do antigo Egito foi o humor divino. Os sacerdotes e mágicos dos cultos que pensavam poder controlar o sol e o Nilo descobriram que não podiam produzir sequer um piolho. Faraós como Ramsés II demonstraram seu status semelhante ao divino criando arquitetura monumental: grandes templos, palácios e pirâmides cuja imensidão parecia ofuscar a divina grandeza (o Talmud explica que a magia egípcia não podia funcionar com coisas muito pequenas). D'us zomba deles revelando Sua presença na menor das criaturas (T. S. Elliot: “Eu te mostrarei medo num punhado de pó”).
O que os mágicos egípcios (e seus sucessores) não entenderam é que o poder sobre a natureza não é um fim em si mesmo, mas apenas os meios para fins éticos. Os piolhos foram a piada de D'us às custas dos mágicos, que acreditavam que como controlavam as forças da natureza, eram os mestres do destino humano. Estavam errados. A fé não é meramente a crença no sobrenatural. É a capacidade de ouvir o chamado do Autor do Ser, de ser livre de tal maneira a ponto de respeitar a liberdade e a dignidade dos outros.
ImprimirEnvie esta página a um amigoCompartilhe isto
ComentárioComentário
NOTAS
1. Shemot 8:13-15
2. Salmos 2:2-4
3. “Eu realizarei atos de julgamento contra todos os deuses do Egito; Eu sou D'us.” (Shemot 12:12)
4. Hilchot Yesodei ha-Torá 8:1.



Por Rabino Jonathan Sacks
Lord Rabino Jonathan Sacks é Rabino Chefe da Grã-Bretanha e da Comunidade Britânica, além de famoso escritor e palestrante sobre Chassidismo. É fundador e diretor do Meaningful Life Center (Centro para uma Vida Significativa).

O conteúdo desta página possui copyright do autor, editor e/ou Chabad.org, e é produzido por Chabad.org. Se você gostou deste artigo, autorizamos sua divulgação, desde que você concorde com nossa política de copyright.
 

Nenhum comentário:

Postar um comentário